Porque o feminismo não é só no feminino

Fevereiro de 2023

Por Maria Beatriz Rodrigues

Há muitas pessoas que julgam que o feminismo é encabeçado por mulheres e direcionado para as mulheres. O próprio nome parece remeter para a dimensão feminina do movimento. No entanto, a verdade é que o termo abarca todas as pessoas e que se não fosse assim, nem estaríamos realmente a falar de feminismo.


O prefixo “femin-” vem da palavra “femina”, do latim, que significa “mulher”. O sufixo “-ismo” deriva de -ισμός (-ismós), da língua grega antiga, e vem transformar o nome precedente num termo que indica uma crença, prática e/ou forma de ver o mundo. A palavra foi cunhada no final da primeira metade do século XIX por Charles Fourier, filósofo francês defensor dos direitos das mulheres. Sim, por um homem. A aceção atual define o feminismo como uma “doutrina que advoga a defesa dos direitos das mulheres, com base no princípio da igualdade de direitos e de oportunidades entre os sexos” (Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa, disponível em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/feminismo) e o consequente “movimento (político, social, cultural, etc.) que procura pôr em prática essa doutrina” (ibid.). Perante estas definições, como será então possível assumir que o feminismo é algo “feminino”? Como é que se pode tratar de algo para as mulheres quando defende precisamente a igualdade entre todas as pessoas, independentemente do género?



Preconceitos e a masculinidade tóxica

A sociedade contemporânea sofre enormemente com o flagelo dos preconceitos. Antes mesmo de pensarmos em algo específico, é muito comum já termos ideias e/ou opiniões pré-estabelecidas, quer estas nos tenham sido transmitidas pela tradição, pela nossa cultura, ou pelas pessoas que nos rodeiam. Muitas dessas ideias erróneas estão ligadas a uma distinção que desde sempre definiu e moldou (de forma argumentativamente negativa) o nosso mundo: homens e mulheres. Desde o início da história dos seres humanos, dividiu-se a nossa espécie entre pessoas do sexo masculino e pessoas do sexo feminino. Apesar de isto não refletir a realidade da sociedade atual – na qual se advoga, de forma generalizada, a utilização do conceito de “género” para refutar a binariedade imposta por “sexo” em contextos sociais –, as diferenças entre homens e mulheres continuam a ser alvo de muitos preconceitos e estereótipos. O feminismo vem combater esta mentalidade: vem dizer que sim, somos diferentes, mas merecemos o mesmo tratamento justo e com respeito.

Assim sendo, a teoria feminista engloba e dirige-se a todes. Luta não só para extinguir a discriminação contra mulheres, mas também contra homens, e pretende inviabilizar todas as ideias preconcebidas relacionadas com o género de alguém. Não são só as mulheres a ser vistas de forma generalista – seres vestidos de cor-de-rosa com aptidões fisiológicas para o trabalho doméstico, que choram em fases específicas do ciclo menstrual e são fracas fisicamente, femininas e frágeis. É também sabido que os homens não choram, não sabem cozinhar, são fortes fisicamente, masculinos e agressivos. Todas estas noções, assim como tantas outras inumeráveis, são prejudiciais para pessoas de todo e qualquer género exatamente porque perpetuam uma noção binária do que somos enquanto indivíduos e parte de uma sociedade. O ser humano é complexo,  e não devemos ser penalizados por comportamentos que se afastam da normatividade. Como referido acima, muitas destas “regras” estão interiorizadas, foram-nos transmitidas de forma inconsciente e não consentida, quase como se fosse a nossa língua nativa: somos fluentes em preconceito, mas o feminismo contraria esta tendência.


O fenómeno conhecido por “masculinidade tóxica” é um dos reflexos mais evidentes do efeito ambivalente dos preconceitos. Afeta tanto as mulheres como os homens, sendo que a construção social de “masculinidade” tem impacto na forma como as pessoas de ambos os géneros se veem mutuamente. Este conceito cultural glorifica a força, a virilidade e o poder dos homens de forma prejudicial para todes. Estas expectativas fazem com que nos comportemos em conformidade, constringides a cumprir, mais uma vez, regras restritivas e padronizadoras. Espera-se que os homens sejam agressivos e isto pode fazer com que se sintam impelidos a fazê-lo, o que perpetua, consequentemente, a normalização da violência contra as mulheres.



O feminismo enquanto solução

A teoria feminista demonstra, desde a sua origem (há aproximadamente dois séculos), que não tem de ser assim, que há uma forma mais igualitária de ver o mundo. Atualmente, o feminismo é ainda mais abrangente, pois apesar de se terem acumulado vitórias ao longo do tempo (como o sufrágio verdadeiramente universal), ainda há muito trabalho pela frente. Desta forma, a desconstrução que o feminismo advoga é paradoxalmente construtiva. Temos de reestruturar o nosso pensamento para conseguir implementar mudanças societais; para isso, precisamos de todes para alcançar a igualdade para todes.

Tendo em conta tudo isto, é fácil compreender que os homens podem, simultaneamente, contribuir para e beneficiar do movimento feminista. Ao defender a mudança do paradigma patriarcal em que vivemos, eliminamos as construções que restringem e prejudicam pessoas de todos os géneros, sempre com a esperança de um futuro em que a igualdade, não só de género, seja difusa na sociedade. Esta realidade permitiria aos homens serem o que são, sem a pressão de desempenharem o papel de homens estratificadamente masculinos. Ser feminista não significa, de todo, apoiar uma supremacia feminina ou a misandria, como tantas vezes pessoas contrárias ao movimento parecem querer demonstrar. Ser feminista é querer ser livre sem enclausurar qualquer outra pessoa, é fazer parte de um movimento que defende, acima de tudo, a igualdade, mas também a compreensão, a solidariedade e o respeito, para com e entre todos os géneros possíveis. O feminismo nunca será escrito apenas para o feminino, no feminino, mas sim para todes nós.